by mends » 16 Nov 2006, 19:29
Deu a louca no mercado de vinhos | 16.11.2006
O fenômeno do aquecimento global faz surgirem novas áreas de produção e coloca em risco algumas das antigas
Por Rodrigo Mesquita
EXAME Ótimos vinhos ingleses e inesquecíveis cervejas francesas fazem parte do menu de obras de ficção, certo? Errado. Uma parte dessa velha piada perdeu o sentido por causa do aquecimento global. Em razão do aumento repentino da temperatura do planeta, largas porções do solo britânico tornaram-se terrenos férteis para o crescimento de videiras sob medida para a fabricação de bebidas finas. As bodegas aproveitaram a inesperada oferta de matéria-prima de excelente qualidade e trabalham agora a todo vapor. Até o fim do ano, os vinicultores ingleses devem atingir a marca de 3 milhões de garrafas, crescimento de 65% sobre o número registrado em 2005. As previsões dão conta de que o recorde deve ser superado em breve. Esse fenômeno não é espantoso apenas pelos volumes envolvidos, mas também pela qualidade média dos produtos. Os rótulos de tintos, brancos e espumantes britânicos cresceram muito no conceito de sommeliers e passaram a receber grandes pontuações e prêmios internacionais -- um feito absolutamente inimaginável até alguns anos atrás.
Certamente nada disso estaria acontecendo se a desastrada ação humana não tivesse virado de cabeça para baixo o clima da Terra. Leões-marinhos boiando em pequenos pedaços de icebergs derretidos e o sumiço da cobertura de gelo no cume de grandes montanhas são alguns dos efeitos visíveis do fenômeno. A essa onda de esquisitices ao redor do planeta soma-se agora a proliferação de bons vinhos ingleses, efeito secundário e menos trágico do aquecimento global. A temperatura média nas regiões vinícolas britâ nicas subiu 2 graus nas últimas cinco décadas. Parece uma alteração sutil, mas foi o suficiente para permitir a casas produtoras como a Denbies, na região de Surrey, no sul da Inglaterra, começarem a ser citadas como referência mundial na produção de espumantes. O clima também se tornou mais amigável para a gestação de tintos e brancos. O pinot noir da casa Three Choirs ousa comparar-se agora aos melhores Borgonhas, para deses pero absoluto dos franceses, que cultivam uma secular rivalidade com os vizinhos do outro lado do canal da Mancha. Outros rótulos britânicos, como Nytimber, Chapel Down e Ridgeview, têm se posicionado à frente de líderes de mercados emergentes como Chile, Austrália e Estados Unidos em testes realizados às cegas por especialistas. A mudança climática na Inglaterra é tão surpreendente que, além da safra de formosas videiras, está permitindo o cultivo de outras espécies outrora improváveis por aquelas plagas, como as oliveiras e as trufas.
Enquanto os ingleses têm motivos para brindar o fenômeno, agricultores de outras nacionalidades andam apavorados com as alterações. Segundo especialistas, o aquecimento global teria o potencial de redesenhar o mapa de toda a produção do planeta, criando novas áreas propícias ao cultivo de videiras e ameaçando de extinção algumas das mais antigas e tradicionais. Tome-se o exemplo da Espanha, país que faz parte do grupo dos grandes produtores mundiais (veja quadro abaixo). Os estudiosos prevêem que, num prazo entre 40 e 70 anos, as vinícolas nas regiões da Catalunha vão se tornar inviáveis. Muito mais dramática é a situação ao sul do país. As denominações da Andaluzia, que há centenas de anos produzem os famosos Finos, Amontillados e Olorosos, simplesmente desaparecerão, engolidas pelo deserto que pode chegar a ocupar até 30% do território espanhol.
O aumento da temperatura é um verdadeiro veneno para a delicada química que permite o surgimento da matéria-prima para os vinhos finos. Com mais calor, a uva produz mais açúcar, o teor de álcool aumenta e o vinho perde todas as sutilezas de sabor. Os atuais transtornos climáticos têm provocado o adiamento da colheita de uvas em até um mês em algumas regiões da Espanha, e os agricultores estão procurando cepas mais resistentes ao calor, como a tinta graciano e a branca verdejo. Ocorre também no momento um deslocamento das áreas de produção em direção ao norte do país, em busca de climas mais amenos. Nos últimos anos, terras nos contrafortes da cordilheira dos Pirineus, consideradas há algumas décadas inóspitas demais para o vinho, vêm sendo disputadas agora a peso de ouro por produtores.
Nos Estados Unidos, também já se acendeu o sinal de alerta. As médias mais altas de temperatura registrada no vale do Napa, a região vinícola da Califórnia, já não mais permitem o cultivo da uva cabernet sauvignon em condições ideais. Um estudo conduzido pelo especialista Noah Diffenbaugh, da Universidade de Purdue, em Indiana, prevê que, dentro de algumas décadas, os transtornos climáticos inviabilizarão as safras de bons vinhos em nada menos do que 80% das atuais zonas produtoras americanas. Isso transformaria imediatamente em vinagre um negócio que movimenta, por ano, 16 bilhões de dólares. "O problema não é apenas o calor, mas também o aumento do número de dias com temperatura acima de 35 graus", afirma Diffenbaugh.
Os campeões da bebida
Quais são hoje os principais produtores mundiais de vinho
PAÍS PRODUÇÃO ANUAL
(em bilhões de litros)
1 Itália 5,06
2 França 5,05
3 Espanha 3,53
4 Estados Unidos 2,35
5 Argentina 1,50
6 Austrália 1,40
7 China 1,20
8 Alemanha 0,90
9 África do Sul 0,83
10 Chile 0,80
16 Brasil 0,28
Em termos de previsões catastróficas, porém, nada supera as que envolvem a França. Estudos mais pessimistas dizem que, em duas décadas, será impossível produzir espumante de boa qualidade na região de Champagne. As grandes e tradicionais casas produtoras de Reims e Epernay já começam a comprar terras no sul da Inglaterra. O solo das duas regiões é idêntico e, ao ritmo de subida das temperaturas, é bastante provável que os consumidores tenham de acostumar-se com o "champagne made in England". Por enquanto, porém, o aquecimento do clima tem provocado colheitas espetaculares na França. As temperaturas e os dias de sol andam no limite ideal para o amadurecimento da uva, o que tem produzido nos últimos dez anos algumas das melhores safras da história em regiões como Bordeaux e Alsácia. O problema é que os especialistas asseguram que esse é o "canto do cisne" do vinho francês.
Por causa das nuvens negras que se anunciam sobre as regiões produtoras, os governos iniciaram um pacote de medidas para tentar amenizar os estragos. O presidente francês, Jacques Chirac, e outros membros da União Européia aprovaram recentemente o desembolso de 575 milhões de dólares para a campanha 2006-2007 do programa de reestruturação e reconversão dos vinhedos do continente. Esse projeto não está relacionado diretamente ao aquecimento global, mas acaba por cobrir as necessidades dos produtores diante da mudança climática. Outro esforço de emergência foi iniciado pela Austrália. O país está colocando em prática um programa de cinco anos para tentar reduzir as conseqüências do aquecimento global sobre os vinhedos. Ele inclui a realização de estudos para saber como se adaptam as cepas aos períodos de seca e o desenvolvimento de técnicas mais aprimoradas para a gestão do solo e da água nos vinhedos. No Brasil, não há, por enquanto, movimentação relacionada a essa questão, até porque nenhuma previsão coloca as regiões vinícolas do país entre as que irão sofrer acentuadas transformações nas próximas décadas. O aspecto positivo disso é que não haverá nenhuma nuvem negra capaz de estragar o quase heróico esforço empreendido pelos produtores nacionais na melhoria de suas safras. O lado ruim da história é a evidência de que nem mesmo um redesenho completo da geografia mundial do vinho parece ser capaz de fazer brotar um Romanée-Conti no Vale do São Francisco.
"I used to be on an endless run.
Believe in miracles 'cause I'm one.
I have been blessed with the power to survive.
After all these years I'm still alive."
Joey Ramone, em uma das minhas músicas favoritas ("I Believe in Miracles")