achei esse texto na net e achei interessante...
O descascador de batatas
Flavio Gomes
07/12/2004 - 21:46
Fukumotopress
E esse tufão, chega ou não chega?
Começo perdendo o trem, de Narita a Tóquio. Um belo começo, culpa minha, burro, tentando decifrar o bilhete que todos os anos compro e não compreendo, fui atrás do vagão 2, estava à altura do vagão 10, é claro que em trem você pode entrar em qualquer vagão, depois se vira e acha o certo, uma vez lá dentro, que se dane o mundo e o bilheteiro.
Mas perdi o trem, um belo começo, e voltei ao guichê para trocar o bilhete, o que espantou a mocinha, pobrezinha, nunca tinha visto ninguém perder um trem. E aí quem se espanta sou eu, porque no Japão, me disseram, no ano passado o atraso médio dos trens-bala foi de seis segundos. Seis segundos! Vão ser pontuais assim no inf*rno.
À janela do trem, decreto: arquiteto morre de fome no Japão. Por isso que os grandes arquitetos, hoje, que estão na moda, são japoneses. Eles saem do país e piram completamente, projetam museus malucos, memoriais, praças, prédios e pontes sem eira nem beira. Para ser pirado, é preciso um estopim, motivação. Que encontram na imutável paisagem do Japão. Você percorre 600 quilômetros num trem-bala a mais de 200 por hora e é tudo igual. Uma imensa favela, com barracos grudados uns nos outros, gente que mora empilhada, pequenos edifícios erguidos a um centímetro da estrada de ferro, ruas apertadas, fios para todos os lados, minúsculas plantações de chá e arroz entre um arranha-céu e um caixote com 300 apartamentos. Feio pra dedéu.
Claro, não há favelas e não são barracos, apenas todos se parecem. Casas de plástico, idênticas. Não há espaço disponível, que se amontoem. O sujeito que não pode provar que tem uma vaga de garagem não tem o direito de comprar um carro. O cara que tem um terreninho de dois por dois tem de plantar alguma porcaria, senão o Estado lhe mete uma taxa no meio da idéia. Os grandes milionários japoneses são donos de campos de golfe. O sujeito, para ter uma área onde possam ser enfiados 18 buracos, tem de ter muita grana. O dono do autódromo de Aida era um desses. Tinha campos de golfe e ainda, por capricho, construiu uma pista para fazer corrida de F-1. Foram duas. D*ido de pedra.
Não há separação entre uma cidade e outra. Nas quase três horas de trem-bala entre Tóquio e Nagoya, passa-se por quinhentas cidades. Não sei seus nomes. Lembro vagamente de ter visto em algum mapa Yokohama, Kamakura, Hakone, Izu, Hamamatsu, Tsu, Toyota, sim, tem uma cidade chamada Toyota. Bem, não sei os nomes, e não importa, é tudo igual.
Não gosto do Japão assim, como muita gente que vai e volta dizendo que Tóquio é di-vi-na e que não há nada como Ginza e seus restaurantes hi-tech. Gosto é dos trens-bala, disso eu gosto, e das máquinas de tudo. Café frio e quente, cigarro, refrigerante, chocolate, guarda-chuva, câmeras fotográficas, você pode passar a vida no Japão sem dizer ohayô gozaimasu para vendedor nenhum, relacionando-se apenas com as máquinas espalhadas por todos os centímetros disponíveis daquele arquipélago rochoso e trêmulo que fica em cima de placas tectônicas pouco sociáveis, foi o que me ensinaram na escola.
No trem-bala, e deve ser assim em qualquer trem, há mocinhas empurrando carrinhos com comida e bebida. Japonês come em qualquer lugar e de qualquer jeito, sem muita cerimônia. Não arrisco acepipes desconhecidos e vou no pãozinho de fôrma sortido, sanduíche sem erro. Tomo chá gelado sem gosto. Ótimo. Elas, as mocinhas, vão de vagão em vagão, e à abertura da porta automática, mesmo que ninguém esteja olhando para elas, fazem uma mesura e dizem bom-dia a todos. Creio que é bom-dia, pode ser outra coisa, como "e aí, p*tada, o que vai ser hoje?", mas desconfio que é bom-dia. São muito educadas e delicadas, se o vagão estiver vazio elas cumprimentam o vagão.
Gente estranha, consumista, uma fauna adolescente das mais curiosas, com cabelos coloridos, calças largas, penteados esquisitos, um esforço danado para parecerem diferentes e ocidentalizados, não sei de onde japonês tira que no Ocidente alguém anda daquele jeito, vestido de Pokemon. E celulares que filmam e fotografam, MP3 players, carros tunados, gastam os tubos com rodas, faróis, lanternas, spoilers, aparelhos de DVD, GPS, japa que é japa tem de torrar no carro mais do que ele vale em acessórios.
É tudo igual e são todos iguais, não falo dos olhos puxados, isso aqui é um tratado sociológico, lembre-se, e tamanha igualdade exaspera os habituados à diferença, como eu. É preciso ter pobre para ter dó e rico para ter raiva, esse é o verdadeiro mote da classe média na qual me incluo, é nosso combustível, no dia em que for tudo igual perderemos nossas referências e estaremos lascados, o comunismo nunca vai dar certo.
Há anos vou ao Japão e, de verdade mesmo, só nos dois ou três primeiros fiquei chocado com alguma coisa. Em 1994, fui a Aida. É onde Buda perdeu as botas (ótima, essa do Buda, trocadilho que jamais teve seu valor reconhecido), cheguei a um dos dois hotéis da cidade e o caos estava estabelecido. Uma centena de estrangeiros tentando fazer o check-in no balcão, os japinhas enlouquecidos, sentei-me e esperei. Quando a coisa acalmou, e eu já tinha percebido que ninguém ali falava nada que não fosse japonês, apresentei apenas o fax com minha reserva, sem pronunciar palavra. Ao que o atendente agradeceu, foi ao escritório, ao telefone, ao computador, à p*ta que o pariu, até voltar, meia hora depois, e conseguir me dizer, num inglês soberbo do interior do c* do mundo, que Mr. Gomes ainda não tinha chegado. Tive ganas de matá-lo, mas ainda encontrei forças e serenidade para apontar o indicador para meu peito e dizer, Mr. Gomes is me, me Gomes, you Tarzan, ele entendeu, ficou mais 15 minutos pedindo desculpas, e me deu a chave.
Algum tempo depois voltei, mas a Suzuka, e lá só me hospedo no Fukumoto Plaza Inn, a casa do Giba, que é um Fukumoto, sim, herdeiro das mais milenares tradições nipônicas, mas nascido no Paraná e torcedor do Coxa, que vive por aquelas bandas há anos, a família cresce a cada temporada, mas agora parou. Tenho um quarto no Fukumoto Plaza Inn, desalojo a filha mais velha e neste ano me compraram um travesseiro, porque reclamei no ano passado de certa almofada ordinária. Sou um hóspede exigente, e os Fukumoto já têm consciência do fato. A especialidade da casa é o café da manhã, um sanduba monstruoso que Giba San faz uma vez a cada 12 meses, quando vou lá, porque teve um ano em que reclamei, também, da falta do sanduíche, e agora tem sempre e ele me obriga a comer dois.
Na primeira estada no Fukumoto Plaza Inn aprendi muito. Me contaram que as crianças devem ir à pé para a escola, ou de bicicleta, os pais não podem levá-las. Elas se encontram nas esquinas e vão juntas, dependendo da idade um monitor as acompanha, tem sempre uma escola no máximo a 3 km de cada casa, pelo menos é o que me contaram. Estimula a convivência, a solidariedade e o senso de direção. E tem um dia definido por mês para jogar fora lixo eletrônico, TVs, aparelhos de som, videocassetes, DVDs, tudo que eles trocam uma vez por ano, e no dia tal o cidadão vai ao lugar indicado e joga fora sua TV, sem esquecer jamais de a ela anexar com fita adesiva o controle remoto, com pilhas. Dá para montar uma casa no dia do lixo eletrônico. Dizem que os brasileiros que emigram para o Japão não compram nada, pegam tudo no lixo eletrônico. Eu encontrei um boneco de neve que acende, gira e toca música de Natal, e levei para casa. Funciona bem, até hoje, com as mesmas pilhas.
Nos últimos anos os Fukumoto não me revelaram grandes particularidades da vida no Japão, ao fim e ao cabo é apenas uma vida dura, isso se nota, e a gente aproveita o pouco tempo que passo por lá para falar bobagens e dar risadas. Damos muitas risadas, como no sábado do tufão, que ficamos esperando, eles com medo, eu ansioso para ver aquela merda toda desabar. Taifu, é como eles chamam, vem do inglês "typhoon", eu chamava de tofu, e como já se sabe o meu tofu passou ao largo de Suzuka e foi arrebentar tudo mais para cima. Fez com que ficássemos o dia todo em casa vendo o cara na TV mostrando onde estava o tofu, a velocidade do núcleo, imagens de chuva, ondas fortes, e quando perceberam que o tofu não ia fazer picas na cidade, colocaram um cara no ar para ensinar um método revolucionário de descascar batatas, basta colocá-las por três minutos no microondas, depois transferi-las rapidamente para uma tina cheia de gelo por dez segundos e pronto, assim se descasca uma batata, que coisa incrível.
Foi o que aprendi neste ano no Japão, a descascar batatas.
Flavio Gomes
flaviog@warmup.com.br