Bento 16 está chegando: a crença em Deus e os católicos
A maioria dos meus amigos é composta de agnósticos. Que eu saiba, não convivo com nenhum ateu. Até Ricardo Bonalume, que dá um testemunho hoje na Folha na categoria dos ateus, é, parece-me, um agnóstico. Qual a diferença?
Um agnóstico não encontra provas suficientes da existência de Deus; mas, lógico que é, sabe que não consegue provar a sua inexistência. No fundo, considera esse debate irrelevante. O ateu nega a existência de Deus de uma forma ativa. No meu tribunalzinho particular, há aí a distância que separa a humildade intelectual virtuosa da prepotência, necessariamente viciosa. Um agnóstico não consegue ou não quer operar com instrumentos que não estão abrigados no escopo da razão científica; um ateu transforma a fé alheia num estigma e numa prova de uma limitação intelectual — como se a cultura de Deus, as religiões, só produzissem obscurantismo.
Um agnóstico poderia dizer: “Não tenho como dizer que Deus existe; acredite quem quiser”. A fala de um ateu é bem outra: “Deus não existe; acreditem em mim!” Por isso digo que o meu amigo Bonalume é agnóstico, ainda que ele rejeite a minha adjetivação, mas não um ateu. Um agnóstico é um homem tolerante, como devem ser o bom católico, o bom protestante, o bom judeu, o bom muçulmano... Um ateu é um fundamentalista, a exemplo dos maus católicos, dos maus judeus, dos maus muçulmanos, dos maus protestantes.
Mais: observem que aqueles que se dizem “ateus” são, no mais das vezes, anticristãos e, particularmente, anticatólicos. Com alguma freqüência, aceitariam orientalismos variados, cultos exóticos — alguns se supõem até pagãos à moda antiga, helênicos (era uma religião, afinal). A agnosticismo é menos particularista e, com efeito, não considera relevante qualquer forma de transcendência. Por isso, católico que sou, convivo muito bem com meus amigos agnósticos, mas certamente não me interessaria pela conversa prepotente de um ateu. Deus me parece grandeza demais para ser negada num auto de fé. O ateísmo militante é antes uma neurose, uma doença do espírito. Bem, por que tudo isso?
Pesquisa
Vocês sabem, o papa está a caminho. A Folha publica neste domingo um caderno especial sobre a visita. O eixo é uma pesquisa do Datafolha. Reproduzo trecho da reportagem que trata dos números e volto em seguida:
O catolicismo continua a perder fiéis, especialmente para os protestantes pentecostais, porém a religiosidade do brasileiro permanece altíssima, resultado em grande parte do trabalho de séculos de evangelização empreendido pela Igreja Católica no país.
Pesquisa Datafolha sobre "os brasileiros e a religião" revela que, em 2007, 64% dos entrevistados se declaram católicos, contra 70% em 2002, 72% em 1998 e 74% em 1996. O papa Bento 16, que chega nesta semana a São Paulo, encontrará um país com uma fatia menor de católicos do que aquelas que acolheram seu antecessor, João Paulo 2º, em três visitas ao Brasil (1980, 1991 e 1997).
O levantamento revela, no entanto, que a velocidade de queda da fração de católicos na população brasileira tem diminuído. De acordo com Mauro Paulino, diretor do Datafolha, houve uma queda mais acentuada nos anos 90 na proporção de católicos (de um patamar de 75%, em 94, para outro de 70%, no final do decênio).
No início da década atual, ele diz, a fatia de católicos se estabiliza em torno de 70%. Entre 2003 e 2007, o patamar volta a cair, mas, desta vez, para algo em torno de 66%. "Houve nova queda, mas não tão acentuada quanto a detectada na década anterior", afirma Paulino.
De acordo com o Censo 2000, 74% dos brasileiros eram católicos. Enquanto o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) inclui indivíduos de todas as idades em sua contagem, o Datafolha realiza entrevistas apenas com pessoas maiores de 16 anos.
De acordo com a pesquisa Datafolha de março deste ano, 17% dos brasileiros dizem hoje pertencer a uma religião "evangélica pentecostal", 5% a "evangélica não-pentecostal", 3% se declaram espíritas kardecistas, 1% diz pertencer à umbanda, e 7% declaram não ter religião.
Alta religiosidade
Ao mesmo tempo, 97% dos entrevistados dizem acreditar totalmente que Deus existe. Do total, 86% acreditam totalmente que "Maria deu a luz a Jesus, sendo virgem" (o índice é de 88% entre os católicos). E 93% de todos os entrevistados (95% dos que se dizem católicos) disseram crer que "Jesus ressuscitou após morrer na cruz".
"Os dados revelam que, no Brasil, o povo conserva um forte espírito religioso, não acompanhando a secularização radical de outros países", afirma d. Geraldo Majella, arcebispo de Salvador e primaz do Brasil, que encerra agora quatro anos à frente da presidência da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil).
Voltei
Fundamentalismos à parte que mascaram, quero crer, problemas que nada têm a ver com religião, não sei que mal pode nos advir da crença em Deus. E, ainda que fosse para recuperar os fundamentos, o “Deus” de nenhuma das grandes religiões justifica o mal. A história da crença, é fato, traz consigo um deplorável rastro de sangue. Mas também de conquistas. A hipótese de uma sociedade e de uma cultura sem religião é menos do que uma especulação porque pensada no vazio. Não existe um modelo, nem mesmo teórico, que forneça instrumentos mínimos para imaginar ao menos uma utopia. Qual seria seu horizonte ético?
Sem titubear, sem hesitar um minuto, eu lhes digo: não entregaria o destino do homem a bispos, a rabinos, a aiatolás, a monges... Mas também não o entregaria a cientistas. A razão não matou menos do que a fé. A quem atribuir os mortos da URSS de Stálin ou da China de Mao, por exemplo? Alguns poderão até condenar Deus, que não as socorreu. Mas não morreram em Seu Nome. Um mundo em que o chamado “interesse da ciência” fosse o único deus velado em altar seria um mundo mais seguro do que este que temos? Tenho enorme respeito por aqueles que, não vendo motivos suficientes para afirmar a existência de Deus, encontram tudo no humano: até mesmo o divino. São, afirmo, bons cristãos sem que o saibam — ou bons judeus; ou bons muçulmanos; ou bons budistas...
Católicos
A pesquisa também indica que caiu bastante o número de católicos em 11 anos, embora o ritmo dessa queda tenha sido reduzido. Atribuo esse freio na fuga de católicos — e isso é um chute — à atitude mais firmemente pastoral de João Paulo 2º, tanto quanto me parece claro que a migração acelerada de antes decorreu da excessiva politização e, pior do que isso, partidarização da Igreja Católica. Muitas paróquias não tinham — e algumas ainda não têm — nenhuma diferença de um núcleo do PT. Os padres da Escatologia da Libertação confundiram a atenção aos pobres com militância política e, assim, expulsaram da Igreja justamente uma fatia dos fiéis mais humildes. Mas esse tema fica para outra hora. Quero me ater aqui a outro aspecto da pesquisa.
O Datafolha pergunta: "Você concorda ou não com a opinião segundo a qual ‘os católicos não praticam sua religião'?". Ainda que a pergunta me pareça um tanto indutora da resposta, os números são significativos. Nada menos de 61% dos brasileiros disseram que sim — mesma resposta de 58% dos que se afirmam católicos. Acham que isso é verdade 65% dos pentecostais e 72% dos espíritas. Independentemente dos números ou da qualidade da questão, ninguém ignora uma realidade: se os 64% dos brasileiros que se dizem católicos vivessem a sua fé e fossem à Igreja, talvez faltassem templos e sacerdotes.
Atenção: o catolicismo é um pouco mais do que uma religião; trata-se de uma cultura, de uma maneira que temos de nos reconhecer como povo, de uma identidade, ainda que um tanto difusa. A fé é, com efeito, vivida, especialmente no que tem de renúncia, sacrifício, doação, entrega, por uma minoria dos católicos — e, vejam só, não há nada de novo nisso. Será que o papa ignora que boa parte, talvez a maioria, dos católicos não vai à missa ao menos uma vez por semana? Mas quando é que eles foram? Será que o papa sabe que boa parte dos católicos peca contra a castidade? Mas quando é que não pecaram? Será que o papa sabe que boa parte dos católicos usa camisinha? Mas quando é que não adaptaram às suas necessidades as recomendações da Igreja?
Bem, então por que a Igreja Católica não muda? Por que não abençoa a dissolução do casamento, o sexo antes da união conjugal, as práticas contraceptivas, a união homossexual, as pesquisas com embriões? Em suma: por que a Igreja não se comporta como um partido liberal laico ou mesmo de esquerda? Porque isso corresponderia à sua fragmentação e, acreditem, a seu fim. E dela surgiria justamente uma miríade de partidos. A fórmula de Santo Agostinho ainda é pilar que sustenta uma instituição que busca ser universal: vai acolher e amparar o pecador, mas não o pecado. Cobrar da Igreja que acate aquelas práticas como elementos constitutivos de sua ética corresponde a lhe cobrar que renuncie à sua dimensão mística, obra inspirada nas palavras de Cristo, o seu real fundador. Para um católico sem adjetivos, a Igreja é um corpo místico criado por um Deus cujos princípios são agredidos por aquelas práticas. E ela não mudará, ainda que receba os pecadores.
Reparem: não escrevo como um católico necessariamente. Também sou lá esta coisa, “quase que maldito”, mas prefiro uma Igreja que acolha, na esperança da reconciliação, a uma que expulse. Se o princípio se dilui e desaparece na voragem do tempo e das exigências que nos são contemporâneas, quem há de nos acolher? Para um católico, mesmo esses meio relaxados que andam por aí, a sua Igreja é a volta ao pai, o último abraço, ainda que se tenha vivido uma vida de rebeldia e contestação. Para um católico, a Igreja é casa paterna — aquela do Filho Pródigo —, que guarda a memória do que somos.
Por isso, por mais que o fim da Igreja Católica seja anunciado; por mais que ela seja pressionada pelas vozes da modernidade e da ciência; por mais que se queira apontar o comportamento laxista dos católicos como evidência da decadência de uma instituição, ela nem cede nem se extingue. Se preciso, pode até escolher ser menor para ser eterna.
http://www.reinaldoazevedo.com.br
"I used to be on an endless run.
Believe in miracles 'cause I'm one.
I have been blessed with the power to survive.
After all these years I'm still alive."
Joey Ramone, em uma das minhas músicas favoritas ("I Believe in Miracles")