by mends » 06 Feb 2006, 10:38
RIM À VENDA. PROBLEMA OU SOLUÇÃO?
O crescimento das filas para transplantes e do mercado negro que se articula à sua sombra leva especialistas a cogitar a legalização de uma atividade que ainda repugna a maioria: a compra e venda de órgãos
Por Riad Younes
Imagine-se no lugar do senhor José Alves dos Santos, de 43 anos, nos últimos quatro recebendo diálise para poder controlar os problemas causados por falência do funcionamento dos rins. Três vezes por semana ele comparece à central de diálise. Uma agulha grossa é inserida em seu antebraço e o conecta à maquina que filtra, durante algumas horas, seu sangue. As toxinas e os fluidos acumulados em excesso são lentamente eliminados.
Demanda.
O número de pessoas que dependem de tratamentos como a hemodiálise
vem aumentando
Seu José sente-se exausto ao término de cada seção. Sua qualidade de vida é, na melhor das hipóteses, sofrível. “Um sofrimento miserável”, em suas próprias palavras. Alguma saída? Sim. O transplante de rim. A colocação de um rim saudável em seu corpo, que faria automaticamente a filtração de seu sangue, eliminando os produtos tóxicos. Adeus máquinas de diálise. Adeus sofrimento.
Seu José está na fila de transplante, assim como outros milhares de pessoas, com a esperança de conseguir o mais rápido possível a liberdade e a qualidade de vida tão desejadas. A espera é muito longa. Pode variar entre dois e sete anos. Pode nunca chegar a tempo. No mundo inteiro, somente 40% a 60% das pessoas recebem órgãos transplantados em tempo hábil. Muitos morrem na fila.
Os sistemas de procura e de fornecimento de órgãos para transplante de rim se baseiam, em grande parte, na doação voluntária, geralmente de parentes imediatos, e nos órgãos retirados de cadáveres, mediante desejo de doação formalizado em vida e autorização da família. A maioria dos transplantes é realizada com órgãos retirados após a morte do doador.
Estudos recentes da Organização Mundial da Saúde (OMS) alertam para a desproporção entre a demanda por órgãos e sua disponibilidade ao redor do mundo. Estima-se que a demanda, em franca ascensão, não tem sido correspondida adequadamente pela oferta voluntária de órgãos.
Vários sistemas foram criados para resolver esse problema grave de saúde pública. Estimula-se a doação de órgãos de cadáver. Orienta-se a população quanto à necessidade de considerar e autorizar a doação de rins, fígado, coração, córnea, ossos, de pessoas que infelizmente perderam a vida, mas que podem beneficiar outros indivíduos nas filas de transplante.
Apesar de todos os estímulos, as orientações, os aprimoramentos legais, relativamente poucos cadáveres chegam a ser “aproveitados”. E a tendência é de uma relação cada vez mais desproporcional entre a demanda por transplantes e a oferta de órgãos post mortem.
A escassez relativa deve-se a vários fatores, entre eles a vida mais prolongada das pessoas, com maiores chances de doenças graves que necessitem de transplante para sua solução. Melhorias no tratamento das pessoas acometidas de doenças como insuficiência renal ou hepática também tendem a aumentar a demanda. Reduzem-se as complicações. Aumenta a sobrevida. Mais pacientes entram, e permanecem, na fila de transplante.
Por outro lado, menos pessoas jovens, potenciais doadores, morrem. A segurança nos carros, por exemplo, aumenta, e as chances de acidentes fatais, proporcionalmente, diminuem (exceção à situação triste dos motoqueiros nas grandes cidades brasileiras).
Complexidade.
O tema merece reflexão, diz Paulo Chap Chap
O desequilíbrio entre a demanda e a oferta de órgãos leva a situações complicadas. Há quem tente driblar o atual sistema de fila de espera, e quem se aproveite da situação. Atravessadores clandestinos que fazem fortunas oferecendo órgãos para o transplante.
O mercado negro prospera. Nos últimos anos, ele cresceu de forma drástica em vários países, o que se convencionou chamar de “comércio de órgãos”. A sociedade fica chocada cada vez que surge uma notícia de um órgão sendo comprado de um doador pago.
À primeira vista, repugna pensar que alguém vende parte de seu corpo para ganhar dinheiro. Repugna pensar que alguém compra esse órgão. Repugna pensar que, apesar de leis claras contra esse tipo de transação, existam médicos dispostos a realizar essas cirurgias, sabendo de antemão a origem dúbia do rim a ser transferido para um receptor.
Essa repulsa é praticamente generalizada. Mas será que tem fundamento? A venda de um órgão pode ser considerada um crime? Algo amoral? Antiético?
Na opinião de Paulo Chap Chap, coordenador dos programas de transplantes de fígado do Hospital Sírio-Libanês e do Hospital do Câncer e reconhecido internacionalmente como um dos maiores especialistas na realização de tais transplantes, com doador vivo, a questão é mais complexa do que pode parecer. “Devemos oferecer à situação um segundo momento de reflexão”, sugere o cirurgião.
Como Chap Chap, um número crescente de especialistas ao redor do mundo vem se aprofundando nessa reflexão e adotando posturas mais flexíveis. Por outro lado, líderes religiosos, sejam católicos, judeus ou muçulmanos, apesar de classificar a doação voluntária um ato de generosidade extrema, condenam claramente o comércio de órgãos.
Na mesma linha de condenação, Francis Delmonico, chefe do grupo de transplantes da Universidade Harvard, nos EUA, e do comitê de ética da sociedade americana de cirurgiões de transplante, em pronunciamento no Congresso americano, declarou que a venda de um órgão deve ser considerada um crime, e que ela “destrói os valores fundamentais de nossa sociedade”. No mesmo discurso, Delmonico apóia a “remuneração das despesas relacionadas à doação voluntária. Isto é eticamente distinto de pagamentos que enriquecem uma pessoa e a estimula a doar seus órgãos”.
Mas a realidade é que, mesmo sendo ilegal ou imoral, a venda de órgãos ocorre diariamente ao redor do mundo. Geralmente os doadores pagos são cidadãos que vivem em países pobres. No desespero de tentar melhorar sua vida e de sua família, oferecem um rim em troca de uma soma em dinheiro.
“Não podemos permitir que indivíduos pobres, desinformados, mutilem seu corpo, arrisquem a saúde, por um punhado de dólares”, sustenta Delmonico. Uma atitude considerada “extremamente paternalista” por Michael Friedlaender, coordenador do programa de transplante renal da Universidade de Jerusalém.
“Aceitamos facilmente a noção de que uma pessoa rica seja livre para praticar esportes perigosos para seu prazer, e empregos arriscados por salários elevados. Por que ao pobre é negado um risco muito menor de vender um rim, ato esse que pode aliviar sua miséria e suas dívidas, e até salvar uma outra pessoa, uma outra vida?”, defende Friedlaender.
Estudos publicados recentemente confirmam a segurança da doação de rim. Avaliando mais de 20 mil doadores de rim, os cientistas não perceberam aumento dos riscos à vida, mesmo passados 20 ou mais anos após a operação.
“O conceito de autonomia do indivíduo sobre seus atos e decisões é recente na história humana, e suas dimensões têm sido discutidas e modificadas. Sugiro que a autonomia de uma pessoa vender parte de seu corpo seja também posta em questão”, argumenta Friedlaender.
Outro lado da questão diz respeito à eficácia dos transplantes. Estudos mostram que os rins de doador vivo permanecem funcionais no organismo do receptor por mais tempo. A venda de órgãos pode aumentar a disponibilidade de rins de “alta qualidade”.
Um dos argumentos mais recorrentes contra a venda de órgãos é que ela privilegiaria os mais ricos. Na opinião de Chap Chap: “O problema real é que só poderiam se beneficiar dessa opção os receptores que tivessem dinheiro para comprar órgãos. A vida dos ricos teria mais valor do que a dos pobres. Nesse caso, os meios, compras de órgãos, não poderiam justificar os fins, preservação da vida, pois institucionalizariam a exploração dos mais fracos pelos mais fortes”.
Esses ricos poderão driblar as filas que aguardam transplante, e até poupar parentes e entes queridos de ter de fornecer voluntariamente seus órgãos. Por que arriscar, mesmo que o risco seja mínimo, a saúde de um irmão ou de um filho, se pode “comprar” um órgão compatível de uma pessoa desconhecida?
Segundo Friedlaender, a legalização da venda de órgãos pode resultar em economia para a sociedade. O doutor constatou que os convênios e seguros de saúde não se importam de pagar as despesas médicas para a realização do transplante. É muito mais vantajoso bancar a operação que as sessões de diálise sem-fim, e todas as complicações a elas ligadas.
Outro argumento dos que defendem a venda de órgão – e, talvez, o mais importante –, diz respeito ao controle público do que atualmente é feito à margem da lei. Em primeiro lugar, eliminam-se os atravessadores que embolsam a maior parte do dinheiro pago pelos receptores. Em segundo lugar, a remuneração do doador (elo fraco de todo esse sistema) poderia aumentar. Em terceiro lugar, haveria maior controle de qualidade sobre os centros que realizam as cirurgias e sobre o tratamento prestado aos doadores.
Há quem defenda que o Estado compre órgãos, uma vez que os transplantes possibilitam economia de recursos públicos por reduzir gastos a longo prazo com o tratamento de doentes crônicos. Sendo pública, a compra de órgãos poderia beneficiar os pacientes que esperam pelo transplante no mesmo sistema de fila única hoje em vigor.
Seriam formas de eliminar o preconceituoso título de “comércio de órgãos” e substituí-lo por “doação incentivada”, como sugere D. Joralemon, professor de ética do Smith College, dos EUA.
Apesar de legisladores e autoridades serem na maioria absoluta contra a venda de órgãos, este tabu começa a ser discutido abertamente, com a participação de especialistas sérios. Afinal, como diz o senhor José, sentado em sua cadeira para mais uma sessão de diálise, “faria qualquer coisa, pagaria o que fosse necessário para sair dessa vida miserável”. Muitos já fazem isso às escondidas.
Realismo.
“Há certa hipocrisia”, critica Elias
EXISTEM OUTRAS PRIORIDADES
Especialista defende a precedência de medidas menos polêmicas
O supervisor da Unidade de Transplante Renal e de Pâncreas do Hospital das Clínicas de São Paulo, ex-presidente da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO), Elias David Neto fala sobre a venda de órgãos no contexto brasileiro.
CartaCapital: Qual é sua posição em relação à venda de órgãos para transplante?
Elias David Neto: Não sou a favor da venda de órgãos, atualmente, no Brasil. Mas esse é um tema complexo. Temos de clarear alguns fatos para comentar essa pergunta: não existem órgãos disponíveis para todos os que os aguardam e, certamente, as pessoas que estão nas filas não sabem bem disso. Assim, a sociedade meio que não comenta que muitas delas vão morrer aguardando sem nenhuma chance de receber um órgão. Há uma certa hipocrisia em relação a isso. Deveríamos deixar claro que não há órgãos para todos, mas que, mesmo assim, não aceitaremos a venda de órgãos. O Brasil ainda está longe de ter um sistema de “procura de cadáveres” adequado. Por exemplo, 30% a 40% dos potenciais doadores não são informados ao sistema. Além disso, muitos corpos de doadores não são mantidos em condições adequadas para a retirada dos órgãos. Somente 50% das famílias autorizam a doação. Um programa de compra de órgãos na atualidade iria beneficiar somente pessoas com posses, exatamente as que têm a oportunidade de mudar o sistema e melhorá-lo com seu poder e influência.
CC: O senhor acha que está na hora de discutir a venda de órgãos?
EDN: Parece-me que este não é o momento ainda, mas sim o de estimular a população a doar e os médicos a notificar os doadores. Estamos empenhados em incentivar as campanhas de doação. Elas precisam ser contínuas, senão as pessoas vão se esquecendo. Creio que o governo poderia dar algum benefício às pessoas que doassem para atender a uma lista única, sem possibilidades de escolher o receptor, mas aprendi que a sociedade tem de andar no seu tempo. Há alguns anos, o atual governador do Ceará, Lucio Alcântara, então senador, fez a lei de consentimento presumido: todos seriam doadores a menos que digam que não são. Seria uma ótima mudança, mas a sociedade não estava preparada, houve reação e a lei foi detonada por decreto presidencial.
"I used to be on an endless run.
Believe in miracles 'cause I'm one.
I have been blessed with the power to survive.
After all these years I'm still alive."
Joey Ramone, em uma das minhas músicas favoritas ("I Believe in Miracles")