Texto publicado na ISTOÉDINHEIRO, só pra esquentar a polêmica...
Um saco de pano repleto de moedas atravessa a tela como se brotasse das cenas mais espetaculares de Matrix. Em câmera lenta, os 30 dinheiros alcançam as mãos de Judas Iscariotes, o homem que traiu Jesus. Dali para a frente, A Paixão de Cristo, de Mel Gibson, exibe 2 horas e 6 minutos de açoite, perfurações, socos, pauladas e crucificação. É o filme mais violento da história do cinema. Gibson, ator e diretor holywoodiano afeito a personagens musculosos e truculentos, quase sado-masoquistas, já amealhou muito mais que 30 dinheiros e nem mesmo precisou trair suas idéias de conservador católico. Até a semana passada, as bilheterias americanas registravam US$ 213,8 milhões em apenas 12 dias de exibição. Ele mostra as 12 derradeiras horas da vida de Jesus num roteiro escrito a partir de relatos selecionados dos quatro evangelhos e reunidos numa narrativa que privilegia a tortura do Messias, poupa o governador romano Pôncio Pilatos e exagera na postura dos sacerdotes judeus e seus discípulos no episódio que definiu 2000 anos de História.
MEL GIBSON
O cineasta investiu
do próprio bolso
US$ 30
milhões
Sua conta pessoal
crescerá em
US$ 30O
milhões
Polêmico, sem dúvida, atraiu elogios dos reacionários, críticas dos católicos moderados e espanto da comunidade judaica, que o considerou anti-semita. “É cruel”, resumiu Dom Geraldo Majella Agnello, presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. “É repugnante, claramente anti-semita e anti-cristão”, disse a DINHEIRO Henry Sobel, presidente do rabinato da Congregação Israelita Paulista. “É historicamente desonesto e moralmente irresponsável”. Majella e Sobel acompanharam uma sessão especial da Paixão de Gibson em Brasília, na semana passada, ao lado de outros 41 bispos da Igreja Católica. Muitos punham as mãos diante dos olhos nas cenas mais fortes. Terminado o encontro, pairava o silêncio de espanto. A Paixão de Cristo exige sangue frio.
O longa estréia no Brasil na próxima sexta-feira, 19, em mais de 300 salas. Traz recordes e, com eles, uma milionária movimentação da indústria cristã. Estima-se que, ao final de sua carreira, terá atraído mais de US$ 650 milhões apenas em ingressos – o que o instalaria entre as quinze produções mais vistas de todos os tempos. Como Gibson realizou o filme de modo independente, levará de 40% a 50% desse total. Enriquecerá também por conta do licenciamento de produtos que cercam o lançamento. São cartões, crucifixos, anéis, broches e até pingentes de gosto duvidoso, com pregos, réplicas daqueles utilizados para fixar Jesus na cruz de Golgota. Pelo menos 80 mil unidades dessas traquitanas já foram expedidas para as lojas americanas. O mercado dos EUA para essa família de produtos é de US$ 4,2 bilhões – terreno fértil, portanto, para os negócios de Gibson. A porcentagem destinada aos estúdios na venda de peças de merchandising varia de 9% a 15%. Induzido a comentar os “pregos-bijuteria” inspirados no martírio, um dos responsáveis pela venda dos objetos vai direto ao ponto. “Conversamos com veteranos comerciantes de artigos religiosos, e não há ofensa em comercializá-los”, diz Paul Lauer, presidente da Motive Entertainment.
Venda antecipada. Fora das salas escuras virá muito mais. Com base na explosão das bilheterias, acredita-se que as vendas em DVD e vídeo cheguem a 8 milhões de cópias ( além das piratas, que começavam a aparecer nos Estados Unidos e no México). Isso significa outros US$ 75 milhões para o diretor. “O segredo desse filme é que ele não é apenas diversão”, diz Robert Alexander, da Alexander&Associates, empresa de análise de mídia. “É também uma experiência religiosa, e muitas pessoas terão interesse em presenteá-lo ou usá-lo como peça de evangelização”. É, de alguma maneira, o que já ocorre nos Estados Unidos. Ali, algumas igrejas católicas e evangélicas distribuem convites gratuitos para o filme. Um empresário da Igreja Batista do Texas comprou US$ 42 mil em tíquetes para entregá-los gratuitamente. Em outros casos, houve exibições em salas de culto. No Brasil ainda não se atingiu esse ponto de fanatismo, mas a distribuidora no País, a UCI, já vende ingressos antecipados pela internet, recurso utilizado apenas com outros dois arrasa-quarteirões: Harry Potter e O Senhor dos Anéis.
Outra aposta certa são os livros com fotos e prefácio de Mel Gibson, vendidos a US$ 25. As prateleiras são alvo do mercado editorial religioso, inclusive no Brasil. Um dos destaques da Bienal Interna-
cional do Livro de São Paulo, de 15 a 25 de abril, é o nicho religioso – que há muito deixou de ser nicho. Dos R$ 2,1 bilhões faturados em 2002 nas livrarias brasileiras, R$ 180 milhões vieram de obras cristãs, ou 8,5% do total. É resultado do crescimento do número de evangélicos (100% durante os anos 90, segundo o mais recente censo do IBGE) mas também de profissionalização do setor. “Po-
demos atribuir a explosão de consumo à insatisfação com as respostas tradicionais e uma procura por alternativas que satis-
façam os anseios da alma”, diz Donald Price, presidente da Asso-
ciação Brasileira das Editoras Cristãs, a ABEC.
O raciocínio é louvável, mas há algo mais forte a impulsionar as caixas registradoras: o marketing. Mel Gibson é campeão nesse ambiente, a ponto de ter escolhido um ator, Jim Caviezel, com as iniciais J.C., e 33 anos de idade quando as filmagens começaram nos estúdios de Cinecittá, na Itália, no estilo claro-escuro do pintor Caravaggio. Essa saída marqueteira de Gibson é oportunismo semelhante ao do advogado e psicanalista Jacob Pinheiro Goldberg, de São Paulo, que entrou no Ministério da Justiça com pedido de proibição de A Paixão de Cristo ou a exibição apenas para maiores de 18 anos ( nos Estados Unidos, onde não há veto, ele foi classificado como “R”, recomendado a maiores de 17 anos). A alegação de Goldberg é decente mas a idéia cheira a censura. “Não é uma obra de arte, é um atentado aos direitos humanos”, defende. Sobel responde. “’É errado vetá-lo”, afirma o rabino. “Mesmo os jovens devem ter o direito de assisti-lo, porque duas horas de cinema não terminarão com décadas de proveitoso diálogo religioso entre judeus e cristãos”.
Salvação. Por trás de todo esse burburinho apaixonado há um evidente poder de atração da mais forte das marcas: o próprio Jesus Cristo e seu símbolo de sofrimento, a cruz. Não há como calcular seu valor real, mas fenômenos como o filme de Mel Gibson ajudam a entender o rótulo, para usar uma expressão aparentemente blasfema. Leandro Cruz de Paula, especialista em marketing, estudioso de marcas, faz uma série de ressalvas antes de tratar do assunto, com justo receio. Mas diz: “A Igreja Cristã praticamente inventou o marketing pessoal”, diz Leandro. “Pôs seu logotipo sempre no lugar mais alto das cidades, veio antes do McDonald's na divulgação de uma marca”. Ao longo dos séculos ela alimentou o principal atributo de JC, a salvação. Mas de tão falada, comentada e repetida, acabou se afastando do “consumidor”. A solução, descobriram os mais espertos, é colá-la à polêmica. Foi o que fizeram os membros de um agrupamento conservador americano, há cerca de dez anos, ao imprimir um pôster em que Cristo aparecia com os mesmos traços do célebre pôster de Che Guevara fotografado por Alberto Korda, numa das imagens mais reproduzidas do século XX. Mel Gibson também buscou confusão intencional em A Paixão de Cristo. Para usar um jargão do metiê, ele posicionou a marca de outra maneira. Deu certo, transformou-a em milhões de dólares, ao alimentar uma discussão milenar que agora ganha novas cores.
A indagação: o filme é anti-semita? DINHEIRO teve acesso a uma das sessões prévias. Não há, ao longo dos 126 minutos de sangue e feridas, condenação direta aos judeus – mas a seleção de Gibson dos trechos dos evangelhos, e o modo como ele os encadeia, resulta, sim, em sentimento anti-judaico. Os personagens romanos são tratados como selvagens, mas alguns deles demonstram compaixão com Jesus. Os judeus, não. Têm certezas o tempo todo diante do líder revolucionário. Pilatos vive um dilema, crucificá-lo ou não? Numa cena, ele expõe o drama pessoal a Cláudia Procles, num relato desconhecido pelos historiadores.
Nesse aspecto, como ocorre com muitos filmes “baseados em fatos reais”, foi tão inepto quanto Bruno Barreto em O Que é Isso Companheiro, ao retratar um dos torturadores como um ser humano razoável e o guerrilheiro Jonas como o pior dos homens. Gibson impõe ritmos que falsificam a morte de Jesus. Num diálogo definidor de seu trabalho, Pilatos questiona Jesus diante dos judeus: “Você não vai falar comigo? Você não sabe que tenho o poder de soltá-lo, e o poder de crucificá-lo?”. Jesus responde: “Aquele que me entregou cometeu pecado maior”. “Aquele”, segundo os textos bíblicos, é Caifás, o sacerdote hebreu, numa clara condenação à elite do Templo judaico. No meio do filme, em um instante de alta emoção, soa como se os judeus em grupo, chefiados por Caifás, fossem mais responsáveis pela morte de Jesus que os romanos. “Não é isso que milhares de anos de estudos permitem concluir”, diz Rafael Rodrigues da Silva, professor de teologia da PUC/SP.
PIRATARIA
Nos EUA e no México
as cópias ilegais já desembarcaram nas lojas de contrabandistas
O anti-semitismo é um crime, é inaceitável. Mas talvez não seja esse o problema central de A Paixão de Cristo. Gibson, fiel a suas idéias religiosas, estabelece um retrocesso em relação ao que definiu o Concílio Vaticano II em meados dos anos 60, por João XXIII e depois por Paulo VI, ao negar a culpa dos judeus e ao modernizar os ritos católicos. O filme é falado em aramaico (pelos judeus) e latim (pelos romanos). É o que se utilizava naquele tempo – mas é também um meio de Gibson defender a postura de seus pares, para quem as missas deveriam voltar a ser realizados em idiomas antigos, na contramão do que orienta o Vaticano. Ao eliminar as interpretações históricas, e ao desconsiderar o fato dos evangelhos terem sido escritos 40 anos depois do flagelo de Cristo, Gibson fez um épico fundamentalista.
Obcecado pela truculência, mergulhou o sofrimento de Jesus num ambiente de mera violência, sem idéias, sem pausas. “Ignorou o momento político, ignorou o sentido espiritual das últimas horas de Jesus e transformou a mensagem de amor numa outra, de ódio”, diz o teólogo Rodrigues da Silva. “É a violência paga pela violência”. Nada mais adequado ao mundo atual, em que o César da hora, o presidente George W. Bush, responde ao terrorismo com moeda igual. Nesse caminho, A Paixão de Mel Gibson tem tudo a ver com o atual cenário político e econômico do planeta. É o tempo da intolerância, da ausência de diálogo, das decisões unilaterais. Não foi à toa que Bush, entre seus próximos, reconheceu admirar a fita de Gibson. É o Cristo que mais lhe cabe – muito diferente daquele cabeludo, de olhos marejados, pleno de espiritualidade, transformado numa ópera-rock dos anos 70, tempo em que os Estados Unidos saíam humilhados do Vietnã, Nixon afundava no escândalo de Watergate e o dólar sofria com a crise do petróleo. A Paixão de Cristo é poderoso e perigoso – mas serve também de espelho para o tempo em que vivemos.