by mends » 09 Jan 2007, 18:02
O Brasil é incapaz de criar o YouTube, mas é capaz de proibi-lo
Não consiguia postar nada no blog, em razão de problemas técnicos do Blogger, desde as 13h30. Vamos ver se agora vai. Estamos de volta. Eu e o YouTube. A Telefonica ainda não desbloqueou o sinal. Está esperando o quê?
O desembargador Ênio Santarelli Zuliani, do Tribunal de Justiça de São Paulo, determinou o desbloqueio do YouTube. Era ele o verdadeiro responsável pela decisão que tirou o site do ar. Em seu despacho, ele observa que determinou que fosse bloqueado apenas o acesso dos internautas brasileiros ao vídeo em que Daniella Cicarelli aparece fazendo sexo em local público — uma praia na Espanha — com o namorado, Tato Malzoni.
Em seu despacho, escreve o desembargador: “O bloqueio do site está gerando uma série de comentários, o que é natural em virtude de ser uma questão pioneira, sem apoio legislativo. O incidente serviu para confirmar que a Justiça poderá determinar medidas restritivas, com sucesso, contra as empresas, nacionais e estrangeiras, que desrespeitarem as decisões judiciais. Nesse contexto, o resultado foi positivo.Todavia, é forçoso reconhecer que não foi determinado o bloqueio do sinal do site Yotube. Essa determinação, que é possível de ser tomada em caráter preventivo, como esclarece o jurista português JÓNATAS E. M. MACHADO [Liberdade de expressão: dimensões constitucionais da esfera pública no sistema privado, Universidade de Coimbra, 2002, p. 1123], deve ser emitida com clara fundamentação e com total transparência sobre o direito de liberdade de expressão e informação, que não comporta censura [art. 220, § 1º, da CF]. Impedir divulgação de notícias falsas, injuriosas ou difamatórias, não constitui censura judicial. Porém, a interdição de um site pode estimular especulações nesse sentido, diante do princípio da proporcionalidade, ou seja, a razoabilidade de interditar um site, com milhares de utilidades e de acesso de milhões de pessoas, em virtude de um vídeo de um casal.”
Para bom entendedor, o despacho do desembargador não chega a ser exatamente auspicioso. Ele afirma que sua primeira decisão, em cumprimento à sentença do juiz Lincon Antônio Andrade Moura, está gerando “comentários” e que isso é “natural” dado o pioneirismo da questão, “sem apoio legislativo” (sic). Entendo. Quer dizer que, não havendo apoio legislativo, o Judiciário se transforma em Parlamento unipessoal, é isso? E sai logo proibindo? Montesquieu sentiu coceira e teve de se revirar na tumba.
Mais adiante, diz que não constitui ameaça ao direito de liberdade de expressão e informação impedir a divulgação de notícias falsas, injuriosas ou difamatórias. Concordo. Faltaria provar agora, então, a menos que eu tenha perdido alguma coisa, que a “notícia” (sic) é falsa, injuriosa ou difamatória. Cicarelli e Malzoni ganharam até um texto elogioso do psicanalista e articulista Contardo Calligaris, na Folha, o maior jornal do país. Ele viu um misto de erotismo e lirismo na cena. E, claro, a razoabilidade que deveria ter dado o tom da primeira sentença aparece, agora, na segunda: não é razoável, diz o desembargador, “interditar um site, com milhares de utilidades e de acesso de milhões de pessoas, em virtude de um vídeo de um casal.” Ufa!
O desembargador tenta ver algo de positivo em sua decisão: “O incidente serviu para confirmar que a Justiça poderá determinar medidas restritivas, com sucesso, contra as empresas, nacionais e estrangeiras, que desrespeitarem as decisões judiciais.” Data vênia, não serviu, não, doutor. Serviu apenas para demonstrar que existe um buraco jurídico que tem de ser preenchido pelo Legislativo, e não pelo arbítrio de um juiz. O poder coercitivo da Justiça não depende de ser exemplar para existir, certo? Mais: não se chega à Justiça sendo injusto. Não se pratica o erro por didatismo
Se um site com milhões de acessos e “milhares de utilidades” depende da vontade de um homem para ficar no ar, então estamos fritos. Mais: sentença judicial não existe com a finalidade principal de ser didática e civilizar a botocúndia. Fosse assim, ao dar uma sentença, um juiz nunca miraria o crime cometido, mas o efeito que sua decisão pode causar na sociedade. Os homens seriam sempre objetos das lições que os juízes pretenderia dar à sociedade. E isso vem a ser o exato avesso do direito.
Mais: a Justiça brasileira está equipada o bastante com legislação e material humano para que se proceda antes a uma análise técnica dos efeitos de uma determinada medida. Doutor Ênio Santarelli Zuliani poderia ter chamado um desses moleques quaisquer que sabem mexer com Internet — se não quisesse convocar um especialista —, e ouviria dele que determinou algo impossível de ser realizado tecnicamente. Impossível e inútil.
Doutor Zuliani, o vídeo jamais deixou de circular na Internet. Mesmo fora do YouTube. Quem faz sexo numa praia pública na Espanha, no país em que o ex-marido é astro, não deve ignorar que o faz para o mundo. Temo que o meritíssimo tenha caído presa de uma teia publicitária e autopromocional. Quem sabe de uma provocação de caráter até pessoal... Talvez a um semiótico não escapassem — só hoje, com o YouTube proibido, vi o doce e tórrido enleio — os aspectos obviamente exibicionista do conjunto da obra.
Há ali passagens que mimetizam uma cena de novela das oito. Outras tantas, claro, dependeriam do pay-per-view. Beijinhos ao longo da pernoca da namorada mesmo numa roda de amigos, num bate-papo ao cair da tarde? É puro Leblon do Manoel Carlos. Já o rapaz recorrendo a algas marinhas penduradas na sunga para esconder — e, é claro, ressaltar — o seu entusiasmo remete a questões que me privo de analisar neste blog quase de família. E, claro, louvo a disposição de quem consegue inverter a máxima de Che Guevara, sendo terno, sem perder a dureza, mesmo com a água gelada batendo no traseiro. Eu, confesso, tendo a me desconcentrar. Vai ver fui contra a censura ao YouTube por pura inveja, rá, rá, rá.
Leiam a íntegra do despacho do desembargador. E saibam: as liberdades individuais, no Brasil, ainda não estão plenamente asseguradas. Como fica claro no texto abaixo, correm o risco de ser reguladas pelo Judiciário, assumindo o papel de Legislativo, quando o meritíssimo não encontra o devido “apoio legislativo”. Quando um homem pode valer por um Parlamento, estamos a um passo da ditadura.
E a frase definitiva a respeito é de Euripedes Alcântara, diretor de redação de Veja: “Não conseguimos criar o YouTube, mas conseguimos proibi-lo”.
*
ÍNTEGRA DA DECISÃO
AGRV.Nº: 488.184-4/3
Relator Des. ÊNIO SANTARELLI ZULIANI (4ª Câmara Direito Privado)
COMARCA: SÃO PAULO
AGTE. : RENATO AUFIERO MALZONI FILHO
AGDO. : YOUTUBE INC.
Vistos.
1. Tomei conhecimento do bloqueio do site Yotube, para cumprir decisão de minha autoria.
Observo que realmente concedi efeito ativo ao agravo interposto por Renato Aufiero Malzoni Filho, no sentido de serem adotadas providências que impeçam o acesso dos internautas brasileiros ao vídeo das filmagens dos autores da ação [Renato e Daniella Cicarelli Lemos] na praia de Cádiz, na Espanha.
Tal determinação decorre do poder concedido ao juiz para empregar meios de coerção indiretos [art. 461, § 5º, do CPC] no sentido de obter efetivo cumprimento das decisões judiciais. No caso, há um Acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo [AgIn. 472.738-4], deferindo tutela antecipada para interditar toda e qualquer atividade, da internet, de exploração da imagem dos autores, por evidenciar ofensa aos direitos da personalidade.
2. É preciso dispor que a questão não diz respeito mais ao vídeo de Cicarelli, como ficou conhecida a matéria, porque o que está em análise é a respeitabilidade de uma decisão judicial. O Youtube não cumpre a sentença, o que constitui ofensa ao art. 5º, XXXV, da CF, uma ameaça ao sistema jurídico. As sentenças são emitidas para serem executadas.
3. O bloqueio do site está gerando uma série de comentários, o que é natural em virtude de ser uma questão pioneira, sem apoio legislativo. O incidente serviu para confirmar que a Justiça poderá determinar medidas restritivas, com sucesso, contra as empresas, nacionais e estrangeiras, que desrespeitarem as decisões judiciais. Nesse contexto, o resultado foi positivo.
4. Todavia, é forçoso reconhecer que não foi determinado o bloqueio do sinal do site Yotube. Essa determinação, que é possível de ser tomada em caráter preventivo, como esclarece o jurista português JÓNATAS E. M. MACHADO [Liberdade de expressão: dimensões constitucionais da esfera pública no sistema privado, Universidade de Coimbra, 2002, p. 1123], deve ser emitida com clara fundamentação e com total transparência sobre o direito de liberdade de expressão e informação, que não comporta censura [art. 220, § 1º, da CF]. Impedir divulgação de notícias falsas, injuriosas ou difamatórias, não constitui censura judicial. Porém, a interdição de um site pode estimular especulações nesse sentido, diante do princípio da proporcionalidade, ou seja, a razoabilidade de interditar um site, com milhares de utilidades e de acesso de milhões de pessoas, em virtude de um vídeo de um casal.
5. O relator agradece o empenho com que as operadoras agiram quando receberam os ofícios do Juízo de Primeiro Grau, para que fosse cumprida a decisão. Acredita-se que o fechamento completo do sinal de acesso ocorreu por dificuldades técnicas de ser criado o filtro que impeça o acesso ao vídeo do casal. Mas, não foi essa a determinação, pois o que se ordenou foi o emprego de mecanismo que bloqueasse o acesso a endereços eletrônicos que divulgam o vídeo, cuja proibição foi determinada por decisão judicial. Não há, inclusive, referência para corte do sinal na hipótese de ser inviável a providência determinada.
6. Para que ocorra execução sem equívocos, determina o relator que se expeça ofício ao digno Juízo para que mande restabelecer o sinal do site Yotube, solicitando que as operadoras restabeleçam o acesso e informem ao Tribunal as razões técnicas da suposta impossibilidade de serem bloqueados os endereços eletrônicos.
7. Fica registrado não estar excluída a imposição, pela Turma Julgadora, de medidas drásticas, como o bloqueio preventivo, por trinta dias ou mais, até que o Yotube providêncie a instalação de software, com poder moderador das imagens cuja divulgação foi proibida. Porém, essa é uma decisão de competência da Turma Julgadora e que poderá ser tomada na próxima sessão de conferência de votos dos Desembargadores. Ademais, a decisão definitiva dependerá das respostas técnicas das operadores que foram notificadas.
8. Oficie-se com urgência para que o Juízo transmita a contra-ordem, por sistema rápido de comunicação, de forma a concretizar o desbloqueio do site Yotube, mantida a determinação para que se tomem providências no sentido de bloquear o acesso ao vídeo de filmagens do casal, desde que seja possível, na área técnica, sem que ocorra interdição do site completo.
Intimem-se.
São Paulo, 9 de janeiro de 2007.
ÊNIO SANTARELLI ZULIANI
Relator
Reinaldo Azevedo
"I used to be on an endless run.
Believe in miracles 'cause I'm one.
I have been blessed with the power to survive.
After all these years I'm still alive."
Joey Ramone, em uma das minhas músicas favoritas ("I Believe in Miracles")