Sem mortes nem processos
Especial "A guerra secreta dos EUA: no rastro da CIA" - parte 5
Manfred Ertel, Erich Follath, Hans Hoyng,
Marion Kraske, Georg Mascolo e Jan Puhl
O fato que os aviões evitam usar espaço aéreo neutro também foi observado pela Suécia. Uma grande desconfiança foi gerada na Suécia em relação aos EUA desde que a CIA levou diante da polícia sueca dois egípcios que pediam asilo em 2001 --apesar de os suecos terem prendido os homens depois de uma pista dos americanos.
Horas depois, os agentes americanos pousaram seu jato Gulfstream V (número de registro N379P) no aeroporto de linhas aéreas econômicas em Bromma, perto de Estocolmo. Oito homens mascarados desceram do jato, pegaram os egípcios e cortaram suas roupas com facas. Eles deram a eles macacões e cobriram suas cabeças com capuzes. Protestos suecos foram negados com gestos secos.
Depois de 10 minutos, os egípcios, que supostamente pertenciam ao grupo Jihad Islâmica, estavam no Gulfstream e foram levados para fora do país. Diplomatas suecos informaram que os dois foram torturados posteriormente.
As linhas aéreas administradas pelo mais poderoso serviço de inteligência americano é o segredo mais mal guardado da indústria. Advogados da CIA e autoridades de transporte internacional aéreo exigiram que a frota de aviões fosse adequadamente registrada. Quando a pessoa conhece os números de identificação desses aviões, fica fácil seguir seus movimentos.
Funcionários da empresa de transporte da CIA têm sempre nomes comuns como Steven Kent ou Audrey Tailor. Eles nunca têm telefones privados ou empregadores prévios. Seus números de previdência são novinhos em folha; seus únicos endereços fixos são caixas postais. Essas são as clássicas "identidades estéreis", como chama a CIA.
O ex-oficial da CIA Robert Baer, um dos mais bem sucedidos especialistas em serviço secreto no Oriente Médio descreveu a política com franqueza assustadora: "Há uma regra dentro da CIA que se você quiser um bom interrogatório e boas informações, deve mandar o suspeito para a Jordânia, se quiser que seja morto ou torturado até a morte, você o envia ao Egito ou Síria e nunca voltará a vê-lo."
Atualmente, quase nenhum país está disposto a receber a sinistra caravana de agentes da CIA e seus prisioneiros. Todos temem retribuição da Al Qaeda.
Mesmo antes do mais recente escândalo da CIA, o novo uso de poder mostrou-se contraproducente de muitas formas. É certo que não houve grandes ataques nos EUA desde 11 de setembro --dez atentados foram impedidos em todo o mundo, alardeou Bush em outubro-- mas as declarações forçadas dos prisioneiros sob maus tratos não ajudam a ninguém, pois nem são admissíveis em um tribunal de justiça americano.
"Mesmo se Adolf Eichmann fosse julgado", adverte McCain. Talvez seja tarde: fica impossível um julgamento justo depois de tortura.
Isso coloca a CIA entre a cruz e a espada. "Você não pode processar essas pessoas, mas também não pode matá-las. O que fizemos foi criar um pesadelo", disse Michael Scheuer, ex-chefe da unidade especial da CIA que, já sob Bill Clinton, recebeu a tarefa de encontrar Bin Laden.
O grau de nocividade do programa de combate ao terror é demonstrado pelo caso do réu Jose Padilla, em Chicago, que foi acusado pelo ex-promotor geral John Ashcroft de querer explodir uma bomba suja. No final, Padilla foi apenas acusado de apoiar e promover uma organização terrorista. As acusações mais sérias foram baseadas em declarações feitas por Khalid Sheikh Mohammed. O governo preferiu omitir o que foi descoberto, por temer que, durante o julgamento, fosse revelado o método sob o qual as declarações foram obtidas.
Não há dúvidas de que o dano político causado pelo abuso dos prisioneiros superou qualquer possível uso para tal prática. O escândalo de tortura da CIA está prestes a se tornar o segundo Abu Ghraib. A tortura nas infames prisões iraquianas prejudicou a imagem dos EUA em torno do mundo e destruiu sua pretensão moral de trazer a liberdade e a democracia ao Oriente Médio.
Por meses, Washington vem travando um amargo debate sobre como pôr fim às incessantes acusações de tortura. O campo de Guantánamo também foi incluído. O assessor de segurança nacional, Stephen Hadley, e a secretária de Estado exigem que os inspetores da ONU tenham o direito de contatar os prisioneiros. No Congresso, políticos dos dois partidos apoiaram a lei proposta pelo veterano do Vietnã McCain, que proíbe a tortura por agentes americanos.
Mas o vice-presidente Cheney e o diretor da CIA, Goss, lutam, com cobertura da Casa Branca, para dar ao serviço secreto isenção dessa proibição de tortura. É possível que estejam travando uma guerra perdida.
Na última quarta-feira, em Kiev, a secretária Rice disse que a proibição da ONU de tortura também se aplicava, naturalmente, aos funcionários do Estado americano. "Sendo uma política dos EUA, estende-se ao pessoal americano onde quer que esteja, seja nos EUA ou no exterior", disse ela na Convenção das Nações Unidas contra a Tortura. Desde então, há especulações em Washington se os radicais vão acatar essa postura ou vão contra-atacar assim que Rice voltar.
Agora veteranos respeitados da comunidade de inteligência estão entrando no debate: Vincent Cannistraro, ex-diretor de combate ao terrorismo da CIA e líder do grupo de trabalho que investigou o acidente do Lockerbie, em 1988, duvida da validade das declarações feitas sob tortura. "Os presos dizem qualquer coisa para acabar com o tormento", diz ele.
Burton Gerber, ex-diretor da unidade de Moscou está convencido que a tortura "corrompe toda sociedade que a tolera". Larry Johson, ex-agente da CIA e especialista de combate ao terrorismo do ministério de Relações Exteriores diz que "O que os verdadeiros agentes da CIA sabem é que é melhor construir uma relação de confiança do que extrair confissões rápidas por táticas como as usadas pelos nazistas ou soviéticos".
E o ex-agente Baer, cuja vida serviu de inspiração para o filme de Hollywood "Syriana", acredita que "essa história vai destruir a CIA".
Até os interrogadores têm dúvidas sobre a legalidade de suas ações --apesar de todas as afirmativas feitas pelo governo. Por qual motivo Washington insistiria tanto em manter os prisioneiros fora do solo americano? Tenet exigiu garantias, repetidamente, que seus agentes não seriam apresentados à justiça no futuro.
Isso levou ao infame selo de aprovação da Promotoria Geral e da Casa Branca, no qual o então vice-promotor geral Jay Bybee confirmou que todo método de interrogatório era permitido desde que não levasse a ferimentos sérios, falência dos órgãos ou morte.
O atual secretário de segurança interna Michael Chertoff também aprovou essas ações. E o advogado geral Gonzáles fez um discurso no Senado no qual alegou que maltratar prisioneiros era permissível desde que os afetados não fossem cidadãos americanos e a tortura se desse no exterior. Os três selos de aprovação para tortura foram defendidos por Bush.
Como a incerteza perdura, a CIA exigiu que os próprios políticos assumissem a responsabilidade pelo tratamento dos prisioneiros na guerra mundial ao terror. "Devemos trancar essas pessoas. Elas declararam guerra contra nós, então temos permissão de mantê-las (presas) até o final da guerra", disse o ex-caçador de terroristas à DER SPIEGEL. Ele defendeu o princípio básico de luta contra o terrorismo: "Temos que pegar essas pessoas antes que possam fazer mais matanças."
Entretanto, Scheuer admitiu que o desdém arrogante do s EUA pelos direitos dos prisioneiros foi como "atirar no próprio pé". Ele disse que, na realidade, não havia necessidade de poderes especiais ou novos métodos de interrogatórios. "Toda essa história é um enorme sucesso para a Al Qaeda, porque estamos perdendo o apoio da Europa, nossa principal parceira na luta contra o terror."
Ao mesmo tempo, entretanto, ele entende a definição de tortura como relativa. "Há uma diferença entre tortura e métodos de interrogatório severos. Tortura é arrancar as unhas da pessoa."