Saiu na Folha de hoje. Os artigos do PLoS podem ser encontrados <a href='http://collections.plos.org/diseasemongering-2006.php' target='_blank'>AQUI</a>. Posso baixá-los, se alguém quiser, pois a universidade assina o journal. A conferência está <a href='http://www.diseasemongering.org/' target='_blank'>AQUI</a>.
HIPOCONDRIA DE RESULTADOSRevista médica acusa indústria farmacêutica de fabricar moléstias para vender remédioMARCELO LEITE
COLUNISTA DA FOLHA
A predileção incomum do público por soluções simples para problemas complexos, em especial os de saúde, é um segredo de polichinelo explorado há milênios pelos vendedores de ungüentos, garrafadas e emplastros milagrosos. Basta visitar o mercado Ver-o-Peso, em Belém do Pará, ou ouvir programas populares de rádio AM, para verificar que a tradição continua forte. Bem mais lucrativo que inventar remédios, porém, é fabricar doenças novas, com critérios de diagnóstico amplos e algum recém-desenvolvido medicamento de uso contínuo. Dá para ganhar bilhões com pílulas como Prozac ou Viagra, os símbolos de uma época em que estar doente é pop.
A receptividade e o entusiasmo dos consumidores contemporâneos para com as novas moléstias parecem inesgotáveis. A boa e velha impotência masculina foi repaginada como disfunção erétil e até ganhou uma companheira, a disfunção sexual feminina. Todos ficaram momentaneamente convencidos de que seriam felizes para sempre, sob as bênçãos do sildenafil. A única ameaça viria talvez do transtorno disfórico pré-menstrual (a antiga TPM), mas contra ele se ergueu uma barragem de inibidores seletivos de recaptação de serotonina, as drogas da família do Prozac: fluoxetina, sertralina, paroxetina, fluvoxamina... É só escolher.
Outra ameaça para a paz no leito, não só a conjugal, ganhou o nome quase humorístico de SPI (síndrome das pernas inquietas). Milhões de pessoas descobriram que sua insônia vinha dos membros inferiores, e não da cabeça. Melhor ainda, que ela poderia ser tratada com um comprimido de ropinirol. Maravilha.
Nem a escola escapou do marketing que mantém as empresas farmacêuticas como um dos ramos mais rentáveis da indústria, ainda que sua capacidade de inovação -medida pelo número de novos princípios ativos aprovados para comercialização- esteja em queda contínua. Para a epidemia de TDAH (transtorno de déficit de atenção e hiperatividade) existe, felizmente, o metilfenidato, que professores, enfermeiros, médicos e até pais se alegram em ministrar a uma geração incontrolável. A nova moda, agora, é diagnosticar guris de até 2 anos de idade com transtorno bipolar (ex-PMD, psicose maníaco-depressiva, antes uma prerrogativa dos adultos) e tratá-los na base dos "estabilizadores de humor".
O dossiê exagera na demoni-zação da indústria farmacêu-tica, que não exerce um papel tão proe-minente assim na exageração de outras panacéias biomédicas
Essa tendência do mercado farmacológico para a massificação de moléstias preocupa um número cada vez maior de médicos e até de jornalistas, em geral coadjuvantes empenhados desse processo. Ele já foi chamado de medicalização da vida, mas hoje é conhecido de maneira mais pejorativa como "disease-mongering" (algo como "apregoar doenças", aqui traduzido por "fabricação de doenças"). Há duas semanas, ganhou mais visibilidade com uma coleção de ensaios publicada no periódico científico de acesso aberto "PloS Medicine" (medicine.plosjournals.org), três dezenas de páginas de ataque frontal às táticas de vendas das empresas farmacêuticas e aos médicos e jornalistas que se prestam a implementá-las.
O termo "disease-monger" foi criado em 1992 por Lynn Payer, relembra Leonore Tiefer, da Universidade de Nova York, em seu artigo para o dossiê da "PloS Medicine". Payer também listou os dez mandamentos para a fabricação bem-sucedida de uma nova doença:
1. Tomar uma função normal e insinuar que há algo de errado com ela e que precisa ser tratada;
2. Encontrar sofrimento onde ele não necessariamente existe;
3. Definir uma parcela tão grande quanto possível da população afetada pela "doença";
4. Definir a condição como uma moléstia de deficiência ou como um desequilíbrio hormonal;
5. Encontrar os médicos certos;
6. Enquadrar as questões de maneira muito particular;
7. Ser seletivo no uso de estatísticas para exagerar os benefícios do tratamento disponibilizado;
8. Eleger os objetivos errados;
9. Promover a tecnologia como magia sem riscos;
10. Tomar um sintoma comum, que possa significar qualquer coisa, e fazê-lo parecer um sinal de alguma doença séria.
O ponto forte do dossiê da "PloS Medicine", editado pelos australianos Ray Moynihan (jornalista, autor do livro "Selling Sickness", ou "Vendendo Doença") e David Henry (farmacologista clínico, fundador da página de internet Media Doctor,
http://www.mediadoctor.org.au), é não poupar a imprensa como co-autora dessa obra de falsificação em massa. O ponto fraco é algum excesso na demonização da indústria farmacêutica, que não exerce um papel tão proeminente assim na exageração de outras panacéias biomédicas, como a genômica e a pesquisa com células-tronco.
A "big pharma", afinal, só vende o que nos dispomos a comprar, como lembrou Ben Goldacre, médico e autor do popular blog britânico Bad Science (má ciência): "Somos todos participantes desse jogo. Fingir que a medicalização é algo imposto a nós -por malvadas e poderosas influências externas- só enaltece um sentimento perigoso de passividade", ressaltou Goldacre.
Marketing saradoAs novas criações da indústria da doença e suas curas extraordinárias
Disfunção erétil + Viagra (sildenafil)Inicialmente destinado a tratar impotência proveniente de outros problemas, como diabetes, cirurgias da próstata e traumas da medula espinhal, o Viagra teve sua comercialização progressivamente ampliada para uso por homens normais, para ajudá-los a obter e manter mais e melhores ereções. O site do fabricante, a americana Pfizer, afirma sem citar a fonte que mais da metade dos homens acima de 40 anos podem sofrer da disfunção. Joel Lexchin, da York University (Canadá), diz que possivelmente se trata de um estudo feito perto de Boston em 1987-1989 e informa que o percentual de 52% foi obtido num subgrupo dos homens pesquisados, justamente o daqueles que tinham procurado uma clínica de urologia (e que portanto deve apresentar uma proporção maior de pacientes afetados). Outros estudos chegaram a cifras como 18% de disfunção erétil, em graus variados, entre homens de 50-59 anos, ou apenas 1% de incapacidade total de ter uma ereção na faixa de 50-65 anos.
Transtorno bipolar de humor + estabilizadores de humor Zyprexa (olanzapina), Risperdal (risperidona), Seroquel (quetiapina) Nova e mais popular embalagem da doença psiquiátrica antes conhecida como PMD (psicose maníaco-depressiva, agora transtorno bipolar I). Estimativas de incidência do transtorno bipolar passaram de 0,1%, no tempo da PMD, que implicava pelo menos um episódio de hospitalização, para 5%, agora que foram incluídas na definição também variantes "comunitárias" do transtorno. Com o milagre da multiplicação dos diagnósticos, inclusive com a proliferação de testes para autodiagnóstico, criou-se também a racionalidade para passar a prescrever medicamentos antipsicóticos como preventivos. Surgiram então periódicos, sociedades profissionais e conferências anuais sobre transtorno bipolar, parcialmente financiados por empresas farmacêuticas. Segundo David Healy, da Universidade de Cardiff, não há apoio empírico para justificar esse uso profilático nem para a crença de que ele possa evitar suicídios (antes o contrário). De 2000 para cá, crianças de até 2 anos de idade passaram a ser diagnosticadas como bipolares e tratadas com antipsicóticos, nos EUA.
Transtorno disfórico pré-menstrual + inibidores seletivos de recaptação de serotonina, como Sarafem (fluoxetina), Zoloft (sertralina), Aropax (paroxetina), Luvox (fluvoxamina) e Cipramil (citalopram) Casos mais radicais da já conhecida e até folclórica tensão pré-menstrual (TPM) foram elevados à condição de doença psiquiátrica séria, rebatizada como transtorno disfórico pré-menstrual. Um estudo de 2002 concluiu que 6% das mulheres americanas sofriam com o transtorno e que outros 19% eram casos limítrofes. Em paralelo, a fluoxetina -nada menos que o popular Prozac- foi reformulada para o novo uso como Sarafem pela empresa Eli-Lilly. Segundo Barbara Mintzes, da University of British Columbia (Canadá), a Agência Européia de Avaliação de Medicamentos recusou aprovação para o uso de inibidores seletivos de recaptação de serotonina para tratar o sucessor da TPM, mas eles foram licenciados nos Estados Unidos e na Austrália.
Disfunção sexual feminina + Viagra (sildenafil) Por volta de 1997, a febre do Viagra ameaçou contaminar também a sexualidade das parceiras, e urologistas começaram a falar numa nova doença, a "impotência" (disfunção sexual) feminina, também chamada de transtorno de excitação sexual feminino. Em 2004, segundo Leonore Tiefer, da Universidade de Nova York, fracassou de vez a busca da Pfizer para ver o Viagra aprovado para resolver o novo problema das mulheres, também, porque os testes clínicos com doença e remédio inovadores deram resultados inconsistentes sobre a eficácia do segundo em tratar a primeira. Apesar disso, médicos americanos continuam a prescrever Viagra para mulheres.
Transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) + Ritalina (metilfenidato) Depois da epidemia de diagnósticos de dislexia, a moda em matéria de medicalização do desempenho escolar passou a ser a TDAH, contemporânea da ascensão da Ritalina como remédio certo para a doença certa. Somente entre 1990 e 1995, multiplicaram-se por 2,5 nos Estados Unidos as prescrições da droga para crianças e jovens. No Canadá, por 5. Segundo Christine Phillips, da Australian National University, o envolvimento de professores na popularização do diagnóstico foi fundamental para a estratégia de marketing das empresas fabricantes, como a Novartis e a Shire, que patrocinam sites "educacionais" na internet com seções dedicadas a educadores e enfermeiros escolares. A indústria também apóia financeiramente grupos de pressão como o norte-americano Children and Adults with ADHD (
http://www.chadd.org).
Síndrome das pernas inquietas + Requip (ropinirol) Antes de 2003, dificilmente ocorreria a uma pessoa com uma sensação incômoda nas pernas e uma urgência em movimentá-las, em especial durante a noite, que ela poderia estar sofrendo de uma doença, muito menos séria. Naquele ano, porém, a GlaxoSmithKline lançou nos EUA uma campanha de esclarecimento segundo a qual "uma nova pesquisa revela um transtorno comum porém pouco reconhecido -síndrome das pernas inquietas- que está mantendo americanos acordados à noite". Em 2005, a FDA aprovou o uso do medicamento ropinirol para tratar essa condição. Segundo Steven Woloshin e Lisa Schwartz, da Escola Médica Dartmouth (EUA), reportagens sobre a doença costumam citar que ela aflige 12 milhões de americanos, ou algo como 1 em 10 adultos, embora uma cifra inferior a 2,7% seja mais provável. Algumas reportagens mencionam que melhoram os sintomas de 73% dos pacientes que tomam o remédio, mas são raras as que informam que o mesmo acontece com 57% dos que tomam placebos, ou que o ropinirol pode causar náuseas, tonturas e até sonolência e fadiga (sintomas que deveria curar).
Alzheimer + inibidores de colinesterase Aricept (donepezil), Exelon (rivastigmina) e Reminyl (galantamina) O inibidor donepezil foi aprovado em 1996 nos Estados Unidos para tratar manifestações do mal de Alzheimer como demência e problemas cognitivos, antes mesmo que estudos clínicos apropriados tivessem sido publicados nos periódicos médicos. Em 2003, um estudo mais completo de revisão dos testes clínicos realizados revelou que o efeito benéfico era mínimo, com somente 10% dos pacientes tratados obtendo resposta melhor que a de um placebo. Segundo Marina Maggini, Nicola Vanacore e Roberto Raschetti, do Instituto Nacional de Saúde da Itália, todos os testes clínicos têm metodologia questionável, pois acompanham pacientes por apenas alguns meses, quando se trata de uma doença que se desenvolve ao longo de décadas.