Dostoiévski: para ele, não existia crime sem castigo. E sem arrependimento. Coisas do passado...
A Boitempo Editorial, aquela editora do imbróglio César Benjamin/livro superfaturado, divulgou uma nota à imprensa. Vocês sabem como é... “A grande mídia conservadora”, como diria Emir Sader, não dará destaque a esses nobres de caráter. Então, eu, que não sou grande, mas apenas conservador, sinto-me obrigado a não deixá-los falar no vazio. Comentarei a nota trecho a trecho, que é como gosto de fazer.
"A Boitempo vem sendo alvo de ataques por parte de veículos da mídia conservadora. Estes se prestam não a informar mas a divulgar supostas denúncias, não apuradas, feitas por César Benjamin contra Emir Sader e a editora da Boitempo, Ivana Jinkings."
A dupla Sader-Ivana continua a espancar a inculta e bela. Na mão de ambos, ela é apenas sepultura, sem jamais atingir o esplendor. A denúncia é real. Ser ou não verdadeira não a torna "suposta". Ah, claro: faltou a vírgula antes da conjunção adversativa.
"Esta nota pretende esclarecer as pessoas que se relacionam com a editora – autores, leitores, jornalistas, colaboradores, livreiros etc. – em relação às acusações, veiculadas de forma leviana por alguns meios de comunicação e jornalistas da dita grande imprensa que (ainda) é grande em tamanho, embora cada vez menor em ética."
A redação colegial não deixa dúvidas sobre a autoria. Vamos, então, a uma lição de ética ministrada por Emir e Ivana.
"Alguns jornalistas não entendem, e seus chefes não admitem, uma editora que publica, sobrevive e cresce com um catálogo coerente e de qualidade, não pautado pela tábula rasa do mercado."
Eu não admito é uma editora capaz de redigir uma nota que tropeça na pontuação na segunda linha, no dicionário na terceira, na regência na 11ª e na decência no conjunto da obra. Reparem ali: “publica, sobrevive e cresce com...” “Publica com”? O petismo é isto: em vez de o intelectual ensinar português a Lula, é Lula quem ensina português ao intelectual... Quanto à resistência ao mercado, comento mais adiante.
"Querem desabonar a Boitempo justamente porque não aceitam que nem todos se pautem pela ética do dinheiro, da obediência de escriba aos senhores do capital. Os ataques visam ainda a envilecer a esquerda: os que se vendem não toleram os que resistem. Assim, para os da mídia comprometida, não devemos nenhuma explicação."
É... Eu, “a nível de mídia comprometida”, realmente não estou satisfeito com as explicações. Não entendi bem essa parte de “desabonar a Boitempo”. O que é isso, companheiros? A editora está abonadíssima. Só a tal da Latinoamericana Enciclopédia Contemporânea, com esse nome ridículo, que afronta, a um só tempo, a sintaxe e a ortografia portuguesas, recebeu “abono” do BNDES, da Petrobras, do Banco do Brasil, da CEF e da Eletrobrás. É abono que não acaba mais. Este blog apurou que a coordenação dos trabalhos custou R$ 750 mil. Não que Emir e Ivana me devam explicações — já que integro a “mídia comprometida” —, mas tenho grande curiosidade: quanto custou todo o projeto? De quanto foi a doação de cada empresa? Por que um banco de fomento como o BNDES financia uma enciclopédia de esquerda que omite, entre outras faceirices, que Fidel Castro é um ditador?
A Boitempo, pelo visto, tem certa repulsa ao capital privado, mas nada tem contra o dinheiro público, não é mesmo?
"César Benjamin acusa a Boitempo de ter superfaturado a edição do livro Governo Lula: decifrando o enigma, feito em parceria com o projeto Outro Brasil, que Benjamin integrou, e que foi financiado com recursos da Fundação Rosa Luxemburgo."
Sim, Benjamin acusa. Não só isso. Ele tem um e-mail em que Sader combina com Ivana a publicação do livro pela Boitempo antes mesmo da licitação.
"A acusação foi feita em meio a outras – primeiro por correio eletrônico, em 2004, o que motivou a editora a iniciar um processo por calúnia e difamação contra Benjamin – e agora é retomada, associando-se a agenda de jornalistas da Folha de S.Paulo e da Veja, interessados menos em verificar a autenticidade da acusação e mais em destruir a imagem pública de Emir Sader, por conta de sua atuação e da solidariedade que recebeu ao ser condenado, em primeira instância, à prisão e à perda do cargo de professor, em processo movido pelo senador Jorge Bornhausen, cuja imagem nunca poderá ser dissociada do regime militar, do governo Collor e dos interesses dos banqueiros."
Uau! É o período mais longo do mundo ocidental. Aquele “a” antes de “agenda” é uma crase; logo, pede o acento grave: “à agenda”. Quando os jornalistas da Veja estamos sem ter o que fazer, um tanto entediados, telefonamos para os jornalistas da Folha:
— Alô. Fernando? Reinaldo. Vamos nos encontrar para destruir a imagem de Emir Sader?
— Agora, Rei? Estava fazendo tiro ao alvo na imagem do Che Guevara.
— Deixe esse milongueiro argentino para o Walter Saller Jr. Isso é café pequeno, coisa para cineastas. Os Emirados Sáderes são bem mais perigosos para a língua portuguesa. Venha armado com o seu Napoleão.
— Napoleão?
— É, o Mendes de Almeida (*)!
(*) Um dicionário...
"Por essa razão, não respondemos a questões enviesadas feitas após a publicação da denúncia – sem procurar ouvir o outro lado – por Fernando de Barros e Silva, para não lhes emprestar uma aura de legitimidade e imparcialidade que não possuem."
O articulista da Folha escreveu um artigo opinativo. Só Emir Sader, Ivana e o ombudsman do jornal, Marcelo Beraba, acreditam que este tipo de texto pede “outro lado”. A Folha fez depois uma reportagem. Sociólogo e editora se negaram a falar. Rogério Cezar de Cerqueira Leite escreveu um artigo energúmeno na seção Tendências & Debates. Como é praxe nesses casos, ouviu apenas um lado: o de Sader e Ivana. Eles não reclamaram. O ombudsman também não piou.
"Aos fatos: a edição do livro foi orçada em 31,5 mil reais. Por quem? Pelo projeto Outro Brasil, cujo coordenador na época era César Benjamin, para ser feita por sua editora, a Contraponto. Agora, o editor aparece na revista Veja, notória porta-voz da direita, dizendo que a produção do livro custaria apenas 10 mil reais."
Meus protestos. Ninguém é porta-voz da direita nestepaiz sem falar antes comigo, com o Diogo e com o Olavo de Carvalho, não necessariamente nessa ordem.
"Mas o fato é que Benjamin, ao ser informado de que teria de se submeter a uma licitação (exigência da Fundação Rosa Luxemburgo), desistiu da publicação. E lamentava que com sua desistência a edição perdia, entre outras, vantagens como "a praticidade e a confiabilidade, na medida em que eu [César Benjamin] me tornava completamente responsável, diante da equipe e da Fundação, por assegurar a melhor combinação possível de qualidade, velocidade e custos". Alegava, após reconhecer que conseguiu da Fundação uma verba de 100 mil euros, que não poderia ser licitado e licitante, o que é correto, mas considerava correto ser contemplado sem a licitação! Ou seja, gostaria de fazer o livro, mas não aceitaria confrontar seu orçamento com o de outras editoras."
Se vocês recuperarem o caso, Benjamin já respondeu a essa questão. Eu continuo interessado no e-mail que Emir enviou a Ivana combinando a publicação do livro ainda antes da licitação. Mais uma vez, o casal volta à questão e ignora esse particular. Acha que basta rebater acusação com acusação.
"Mas, como disse Dostoievski e um certo editor costuma lembrar, “Se Deus não existe, tudo é possível”.
1 — Dostoiévski não disse isso duplamente; em primeiro lugar, porque não é “possível”, e sim “permitido”; em segundo, porque não disse nem uma coisa nem outra exatamente. Não ele.
2 – Quem disse que Dostoiévski disse foi Sartre em O Existencialismo É um Humanismo. E a praga pegou.
3 – Frase semelhante é dita, na verdade, por Aliocha Karamazov, o santinho religioso de Os Irmãos Karamazov, a Ivan, o intelectual ateu e verdadeiro cérebro do parricídio praticado por Smerdiakov (o quarto é Dimitri). Confrontando o ateísmo do irmão, diz Aliocha: “Mas, se Deus não existe, então não há crime e não há pecado; tudo é permitido". Ele o dizia em tom de censura. O curioso é que o diabo, do Capítulo IX do Livro VI, aparece dizendo a mesma coisa a Ivan, aí com claro sentido de aprovação.
4 – É curioso um marxista leninista (suponho) citando Dostoiévski, ainda que torto. Seja em Irmãos Karamazov, seja em Crime e Castigo (com o indecente Raskolnikov), Dostoiévski censura os que ultrapassam os limites em nome de uma idéia. Aqueles que acham que tudo é permitido.
"A Boitempo teve aprovado um orçamento de R$ 29.800,00. É provavelmente o primeiro caso de "superfaturamento" em que o custo final revelou-se menor que o orçado. O projeto como um todo, incluindo relatório financeiro, foi aprovado e renovado pela Fundação Rosa Luxemburgo."
E o e-mail combinando a publicação?
"Para entregar o livro na data acordada, a Boitempo contratou profissionais experientes como Túlio Kawata, Aluizio Leite, Gilberto Maringoni; alterou-se a programação da editora, suspenderam-se projetos, assumiram-se custos. É óbvio, e não há nada de vergonhoso ou imoral nisso, que o custo de produção (lembrando que há também gastos fixos, administrativos e impostos) foi inferior aos R$ 29.800,00 pagos pela Fundação. Se não fosse assim, o livro não teria sido produzido com a urgência necessária."
Como é que é? “Não fosse assim” (vale dizer: o trabalho custou menos do que o que foi pago pela fundação”), “o livro não teria sido produzido com a urgência necessária”. Não entendi a relação de causa e efeito estabelecida. Alguém entendeu? Quer dizer que, se tivesse sido pago o dobro, o tempo teria sido reduzido à metade?
"Não era uma obra da Boitempo e sim um serviço prestado. Benjamin, ao contrário, integrava (na época coordenava) o projeto, era remunerado por ele, e ainda assim preparava a edição, sem crises morais, por quase 2 mil reais a mais. O livro foi produzido, com a qualidade, a pontualidade e a competência que são características reconhecidas da editora."
Ô, nem diga. É puro rigor. A cada palavra. Eu quero saber da licitação. E quero tirar aquela vírgula entre “produzido” e “com”. Em nome da “qualidade” e da “competência”.
"Há dois anos, Ivana Jinkings pediu a Benjamin que se retratasse, que enviasse a sua resposta para as listas em que divulgou o e-mail acusatório; diante da recusa na retratação, recorreu-se à Justiça. Em uma nítida e completa inversão dos fatos, a imprensa não só tratou o processo de calúnia e difamação como contrário à Boitempo, em vez de sinal claro da nossa seriedade, como também encarou o arquivamento do processo como se isso desse alguma razão ao acusado, em vez de noticiar a verdade, que o processo era da Boitempo contra Benjamin, e que foi arquivado por questões de prazo (ficou sem acompanhamento jurídico quando foi transferido para Brasília, porém sua retomada já está em curso), sem que o mérito da questão pudesse ter sido julgado."
- Quem disse que mover um processo acusando alguém de “injúria” e “difamação” é, por si mesmo, “sinal claro de seriedade”? Se é assim, por que Sader mobiliza seus amigos contra a sentença que o acusou no processo movido por Bornhausen?
- Processo “arquivado por questões de prazo”? Retomada de “processo arquivado”? Tudo estranhíssimo. Mas sempre será uma boa dar a Benjamin a oportunidade de apresentar os documentos de que dispõe.
"Notícias filtradas, editorializadas, e que devem merecer a repulsa de todos. Sem democratização da mídia, não haverá democracia no Brasil. Sartre, se vivo fosse, teria nesse episódio inspiração de sobra para brindar seus de leitores com A náusea 2."
Claro, claro, precisamos ter um Comissariado para Assuntos de Mídia para resolver essa questão (Dilma Rousseff já está cuidando disso). Se Sader e Ivana não leram Dostoiévski, e estou certo de que não leram, não é maior seu conhecimento de Sartre. Não se aplicaria uma segunda versão de A Náusea ao caso porque a primeira passa a quilômetros intelectuais de qualquer contenda dessa natureza. Ao Sartre dessa novela, não duvido, gente como Sader e Ivana é que provocaria profundo mal-estar. Ele não tinha se tornado ainda um stalinista gagá. E o cretinismo comunista não o horrorizava menos do que o fascista.
Talvez ficasse melhor uma reedição de uma peça de teatro do autor: As Mão Sujas. Aí, sim. Ainda censurando os criminosos comunistas, Sartre demonstra como eles eram capazes de tudo na obediência a um ente de razão. Fica patente na peça que o crime comunista era apenas a fachada de um lapso moral bem mais profundo.
Reinaldo Azevedo